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Entrevistas

Avalanche e medo de altura: Saiba como Cesalina Gracie usou o jiu-jitsu para escalar o Everest

Em maio de 2023, um membro da família Gracie alcançou o topo do mundo. Mas diferentemente das manchetes que nos habituamos a lidar com o decorrer dos anos, essa notícia não está no sentido figurado e sequer tem correlação com os esportes de combate. Neta do Carlos Gracie, Cesalina foi além e levou a expressão ao pé da letra. Na maior aventura de sua vida, a brasileira escalou o Monte Everest – a montanha de maior altitude do planeta Terra. Em entrevista exclusiva à reportagem da Ag Fight, Cesalina destacou como a filosofia e os ensinamentos tirados do jiu-jitsu foram cruciais para superar o desafio.

Diferentemente de boa parte dos montanhistas, quando aceitou a missão de escalar o Everest, Cesalina sequer tinha experiência no ramo das escaladas. A brasileira admitiu, inclusive, que sua primeira montanha ‘conquistada’ foi justamente a de maior altitude possível, a 8.848 metros acima do nível do mar, na Cordilheira dos Himalaias.

“Quando esse convite surgiu, em janeiro, eu tinha sete semanas para me preparar. A minha falta de experiência fez com que eu fizesse um esforço muito maior na preparação. Entrei em contato com montanhistas que já tinham escalado o Everest, fiz tudo que estava ao meu alcance para transformar esse sonho em realidade e aconteceu. Fui direto para o Everest, o Everest foi a minha primeira montanha. A primeira neve que eu pisei (na vida), foi a neve do Everest, indo para o campo um. Foi uma experiência única. Não conheci ninguém que escalou o Everest logo de primeira. Algumas pessoas me apoiaram, outras tentaram me desencorajar e alertar”, relembrou.

‘Mentalidade de faixa branca’ para aprender

Instrutora de jiu-jitsu nos EUA, Cesalina é faixa marrom dentro dos tatames. Mas fora deles, mais precisamente quando o assunto é escalada, a jovem precisou adotar uma metodologia da qual apelidou de ‘mentalidade de faixa branca’. A fim de tentar minimizar a inexperiência no ramo do montanhismo, a neta de Carlos Gracie se propôs a absorver o máximo de conhecimento possível durante a preparação. Para isso, a brasileira contou com o auxílio de Michael McCastle, atleta de resistência e treinador de desempenho físico.

“A metodologia que abordei desde o dia 1, foi a da mentalidade faixa branca. Eu fui muito realista comigo mesma de saber que tenho ferramentas internas que trabalhei a minha vida toda dentro do jiu-jitsu que me ajudam a controlar meu sistema nervoso e a me preparar da melhor forma possível. E a mentalidade do faixa branca faz parte saber onde estão nossos pontos fortes, fracos e saber que em qualquer ambiente, seja no tatame, é bom a gente ter um mestre. É crucial ter alguém guiando e observando. No montanhismo não é diferente. Então quem iria ser meu mestre faixa preta no montanhismo? Busquei o mais graduado que é o Michael McCastle”, admitiu a membro da família Gracie.

Detalhes da preparação e simulação de altitude

Com pouco menos de dois meses para se preparar desde que topou o desafio até o primeiro dia oficial de escalada, Cesalina adotou uma árdua rotina de treinos físicos e mentais, a fim de saber lidar com as adversidades que a aguardavam no Monte Everest. Neste período, a brasileira treinava diariamente por, no mínimo, três horas.

“Dentro desse processo de treinamento, a gente fazia exercícios de força, fazíamos trabalho mental, ele me levava à exaustão. Esse treinamento era para ver a minha capacidade de responder sob pressão, de agir quando meu corpo já estava completamente desgastado. Qual a minha resposta diante de uma possível calamidade na montanha? Vou congelar, paralisar? Sei respeitar meus limites? O treinamento consistiu em sete semanas, eram de 3h a 3h e meia de treinamento por dia”, declarou.

Por não possuir um lastro dentro da modalidade, Cesalina afirmou que não sabia como seu corpo responderia à altitude. Desta forma, a neta de Carlos Gracie realizou um camp intensivo de três dias dentro de um espaço fechado que simulava o ambiente de ar rarefeito que ela encontraria na montanha. Foram dez horas diárias de desafios, obstáculos físicos e desafios mentais propostos pelo seu treinador, a fim de blindar sua atleta.

“Na quarta semana desse camp, a gente fez uma imersão, que são três dias em altitude elevada. Esse era o principal ponto de interrogação para mim. Como meu corpo responde em altitude? Quando a gente fez esse camp em Portland, tinha uma academia com um espaço fechado em que eles simulavam a altitude. Dentro desses três dias, a gente treinava dez horas por dia, variando treinos de força, circuitos, cardio, escalada. Tudo com peso e dificuldade. Sempre testando minha capacidade de lidar com adversidades. Ele conseguiu unir desafios físicos, mentais e emocionais. O foco principal desse camp é você saber que tem capacidade de superar desafios”, destacou.

Medo de altura

Além de toda preparação física e mental, Cesalina teve que superar um medo paradoxal ao desafio que estava por vir: o de altura. Prestes a escalar quase 9.000 metros acima do nível do mar, a brasileira precisou encarar seus receios de frente. Em tom bem-humorado, a integrante da família Gracie relembrou que o ‘pavor’ de altura foi sendo vencido aos poucos durante sua trajetória de vida.

“Morro de medo de altura (risos). Minha vida inteira tentei superar esse medo. Lembro que meu primeiro desafio de altura foi saltar de bungee jump, no meu aniversário. Me dei de presente, mas não sei que presente é esse que me assusta mais que alegra (risos). Busco sempre me desafiar nesse sentido. Sempre fui a pessoa que se meus amigos moravam em um andar alto de um prédio e as pessoas estivessem na varanda, eu já ficava: ‘Opa, meu Deus, não quero nem ver’ (risos). Depois do bungee jump, saltei de paraquedas, uma sensação mais agonizante ainda. No final do salto, gostei da sensação. Do bungee jump, para o paraquedas, para o Everest foi um salto tremendo (risos). Tive muito medo lá e, para não entrar em pânico, usei a minha respiração. O Everest me forçou a encarar de frente o meu medo de altura”, relembrou Cesalina.

Jiu-jitsu e força mental

Mesmo sem experiência prévia em escaladas, Cesalina foi capaz de subir a montanha mais alta do mundo – feito que inúmeros montanhistas com grande bagagem foram incapazes de realizar. Durante a subida do Monte Everest, a neta de Carlos Gracie se deparou com diversas pessoas desistindo no meio do caminho. Dentro de si, a brasileira sabia que tinha um diferencial que lhe faria prosperar: o controle interno que trouxe dos ensinamentos oriundos do jiu-jitsu.

“Ficou tão claro para mim a importância do jiu-jitsu nesse desafio. Nunca imaginei que o que realmente me levaria ao topo seria o jiu-jitsu. Atribuo 100% a minha capacidade de tomar decisão sob stress, de decidir seguir em frente, de análise, de me proteger da melhor forma possível a habilidade e a força mental que o jiu-jitsu trouxe na minha vida. O jiu-jitsu me ajudou com autocontrole. Se eu entrasse em pânico, não iria conseguir seguir em frente. O jiu-jitsu me dá tanto a capacidade interna de tomar decisões quando estou sob pressão, quanto a capacidade de ignorar os fatores externos que poderiam me fazer desistir. O meu diferencial era que a filosofia e os princípios do jiu-jitsu vivem tão forte dentro de mim. Quando se chega em um nível (desses), o principal elemento (definidor) é mental. É muito difícil, muita pressão”, analisou a jovem.

Atravessando avalanches

A escalada do Monte Everest durou cerca de 50 dias, conforme adiantou Cesalina. Mas por mais que estivesse extremamente preparada do ponto de vista físico e mental, a brasileira foi surpreendida e precisou lidar com catástrofes naturais durante o caminho. As mais extremas delas foram duas avalanches que atingiram a faixa marrom de jiu-jitsu que, penou, mas persistiu rumo ao seu objetivo maior.

“Peguei duas avalanches lá, que realmente caíram em mim. Na hora passa um filme na sua cabeça, não tem como ter controle total do seu sistema nervoso nesse momento. Quando a avalanche veio em cima da gente na Cascata do Khumbu, eu me perguntei: ‘Meu Deus do Céu, o que estou fazendo aqui?’ Me perguntei: ‘Por que estou fazendo isso? Por que eu seguiria em frente? Será que sou capaz? Será que vou morrer? A única pergunta que não surgiu na minha cabeça era: ‘Será que devo voltar?’ A minha escolha foi sempre seguir em frente”, afirmou Gracie.

‘Preparada’ para a morte

Com catástrofes naturais incontroláveis ao redor e lidando com mortes a todo momento, Cesalina não pôde deixar de pensar em uma fatalidade em determinados momentos da escalada. A brasileira ressaltou que a temporada de 2023 foi a mais letal da história do Monte Everest, deixando inúmeras vítimas. Até por conta do receio de perder a vida, a neta de Carlos Gracie estava mais do que preparada para qualquer adversidade que surgisse pelo caminho.

“Pensei em algum momento que poderia morrer? Com certeza. Ignorar isso seria imaturidade. O principal acordo que você tem que fazer consigo mesmo ao subir o Everest é que você está preparado para a morte. É algo que só tive consciência quando cheguei lá. Ninguém consegue te preparar para isso. Quando você se depara com uma situação tão extrema quanto a que me deparei, você reflete sobre tudo na sua vida. Essa foi a temporada mais fatal dos 103 anos de escalada do Everest. A morte é algo presente, real e tangível no Everest. Nunca tinha passado por isso. São poucas situações na vida que você se depara com corpos mortos na sua frente. Fiz um acordo comigo mesma que se estivesse respirando a me movimentando, seguiria em frente”

Êxtase ao chegar no cume

Depois de lidar e superar tantos desafios e obstáculos, Cesalina lembra com carinho a sensação de, enfim, chegar ao cume da montanha – o ponto mais alto do planeta. Com um misto de emoções, a brasileira – apenas a oitava representante do país a alcançar tal façanha – afirmou que os 40 minutos em que ficou no topo do monte foram, possivelmente, os mais intensos de sua vida. 

“Foi um sonho. Falo muito da postura da campeã, fiz a postura da campeã no topo. Me senti a maior campeã desse mundo. É uma conquista interna, você celebra consigo mesma. É muito lindo. A maior demonstração de amor próprio, de orgulho, felicidade consigo mesma. Aquela sensação de: ‘Eu posso. Me trouxe até aqui, conseguir atingir esse objetivo’. Depois daquilo, tudo é possível. Voltei de lá com muito mais coragem para tudo e com outra perspectiva para enfrentar problemas. Fiquei 40 minutos no cume, parecia um filme. Não queria ir embora. Pensava: ‘Será que posso morar aqui?’ (risos). É difícil descrever. Essas são as melhores experiências da vida, as que nos faltam palavras. Você vê a curvatura do planeta Terra lá de cima, eu não acreditava, foi incrível”, concluiu.

Os gastos – desde equipamentos até treinos e preparação – da aventura de escalar o Everest, de acordo com a própria Cesalina, podem variar de 40 a 250 mil dólares (R$ 200 mil a R$ 1,2 milhão). Mas qualquer despesa prévia foi posteriormente transformada em investimento em si própria, já que a experiência de estar no topo do mundo é para poucos e não tem preço.

Natural do Rio de Janeiro, Gaspar Bruno da Silveira estuda jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fascinado por esportes e com experiência prévia na área do futebol, começou a tomar gosto pelo MMA no final dos anos 2000.

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